Ai, que história estranha que eu tenho que contar. Mas vou fazer o quê? Juro que é tudo verdade. Não inventei nada. Mesmo que pareça absurdo. Não sei se vou contar. As pessoas vão dizer “essa história é estranha demais”. Tenho que tomar coragem. Vamos lá. Aguente firme. Aí vai.
***
Uma mulher está perdida em Curitiba. “Sim, estou perdida. Como se chama esse lugar?” Ela vê telhados. As pessoas dizem: “Você está na cidade.” Ela indaga: “O que é cidade?” Todos riem da pergunta. As manicures são tão boazinhas: “Cuidado amiga, que tem um crocodilo na esquina.” A mulher fica enervada: “Alguém me explica o que é essa porra de cidade?” Ela vê muros. Caminha trôpega, senta-se e berra: “Algum filho-da-puta me diz o que é a cidade!” Na praça Tiradentes, as pessoas passam e pensam: “É louca, coitada.” Mas ela não é louca. Só está perdida. Depois, encontra um mendigo. “Olha, moça, me paga uma pinga que eu te explico essa cidade aí que você quer.” Ela bebe com o mendigo uma pinga e exige, já mais relaxada: “Te paguei, agora me diz! O que é esse negócio de cidade?” Ele: “Ah, moça, tá vendo a calçada aqui? Tá vendo o horizonte ali? Cidade é o lugar que vai da calçada até o horizonte. Pronto.” Ela, confusa, dirige-se ao balconista: “Me vê mais uma pinga.” Na calçada, percebe que o mendigo fugira. Bêbada, vê viadutos, passarelas, estações – mas não entende. Passam árvores, fachadas – até mesmo janelas. A mulher está labiríntica, ou melhor, labirintítica. Física. Estetoscópica. Numa loja, observa a vitrine com manequins. Pergunta a um deles: “Viu cumpadi, cidade é onde?” Ele responde, em criptogramas: “Cidade é tudo, cumadi, ao redor, em cima, aos lados – é você mesma.” Ela replica: “Mas onde que eu tô?” Ele esclarece: “Na cidade, comigo, convosco, contigo, conosco – bem aqui.” Ela desorienta-se. “Conosco? Convosco? Manequim do caralho!” E sai aos trancos, abismada, fungando, deixando pegadas fundas no asfalto. Pensa: “Quero fumar.” Com dificuldade, consegue um cigarro. Mas não tem fogo. Uma perua sai fumando de uma banca de jornal. Ela ruge: “Empresta o fogo, maluca!” A perua responde: “Pega na banca, meu bem!” Ela fica vermelha. Sobressaltada. Avança sobre a perua. As duas rolam no meio-fio. Redemoinho de cabelos. Bundas, cotovelos, genuflexões. Ela é forte e reduz a perua a uma poça de tripas. Ainda consegue salvar o cigarro. “Puta velha. Onde já se viu negar fogo?” E sai andando, vitoriosa, fumando, mordiscando e dizendo: “Pega na banca! Pega na banca, querida! Acha que fogo dá em árvore?” E ri, mas ri tão alto que os paralelepípedos do Alto da XV tremem. “Agora entendi, rá – cidade! É o nome que eles dão pra esse amontoado de gente e pedra!” Já na Praça Osório, anuncia, em brados: “Cidade! Pega na banca, cumpadi! Acha que fogo dá na árvore?” Ela – a onívora, no meio da cidade das flores, salta de um banco a outro, travessa, a saia florida esvoaça na cara dos passantes. Estridente, vaticina: “Vadia, Curitiba, travesti, alho-poró, sopa de saliva! Só tem vagabunda nessa padaria!” A cidade gira num tumulto, as flores, alfaiates, ela se ajoelha, homens abrem o zíper, ela se curva, chupa, agarra os galhos do Passeio Público: “É dez real! ” E gargalha, assustando as gralhas, se esfregando na grama do Passeio, sossegada, senhora, dona de tudo: “Pega na banca!”
***
Pronto, acabou. Nem foi tão difícil assim. Mentira. Foi horrível. Foi asqueroso. É uma história triste? Não sei, porque somente fiz o papel de narrador. Se for triste, me perdoem. Espero que seja alegre. Talvez seja um pouco violenta. Desculpem os palavrões. Sou apenas o encarregado da transcrição, não tenho culpa. Gerlamente, escrevo coisas bem melhores. Sem palavras feias. E essa história, pra piorar, é absurda. Também não gosto dessas coisas. Prefiro histórias que fazem sentido. O que posso fazer? Qualquer dia, quando eu estiver de folga, escrevo uma história mais bonita. Juro.
Cities in dialogue:
- Collage 1 (untitled| Santa Fe – Argentina| Ygor Raduy)
- Photo 1 (não-postal | São Paulo | Lucas Lopes)
- Photo 2 (eu perderia a imagem – Porto Alegre – Gabriela Canale
- Text (Pega na Banca | Curitiba | Ygor Raduy)
- Photo 3 ( one god alla | Istambul | R.Cambusano
- Photo 4 (Pés são do tamanho do sol| Curitiba| Rafael Scultz)
- GIF (Olhos urbanos e muros que dizem… | Jaguariúna | Tiago Spina)
- Photo 5 (Árvore contínua | Atibaia | Jaime Scatena)
- Photo 6 (Pegando na banca | Cachoeira| Tatah Café)
One Reply to “Pés de Sol | Pega na Banca! | Muros como pele: literário ou visual?”