– Mas caleidoscópios de novo? Não acredito que você vai falar disso novamente.
– É que eu gosto tanto… tanto… tanto…
– Mas e os outros, também gostam? Tem certeza que o papo vai ser mesmo esse?
– Acho que gostam, sim… sim.. sim… E, quem quiser, pode virar o papo pra outro lado… lado.. lado…
– Não vai ficar repetitivo?
– Repe, o quê? … quê? … ê?
– Repetitivo, tem o risco de ficar repetitivo.
– Mas acho que vão gostar do que fiz… fiz.. fiz.
-Tem certeza?
– Sim, tenho certeza… certeza.. certeza.
– Olha lá, hein?
Calei o olhar fragmentado e a luz me fez múltiplo
Calei, calei dos, caleu dos cópios de mim…
Boa tarde. Sou o professor de manejo de minhocas. Aliás, perdão, sou o professor de teoria da arte. Ás vezes me confundo. Hoje vamos falar sobre minhocas. Não, corrijo-me. Nossa aula hoje será a respeito de cascópios. Vejam bem. Caloscópios. O que são esses objetos? Moluscos? Insetos? O que são calóidiscópios? Alguém sabe? Ninguém? Nunca viram um cadelãoscópio? Sei que já viram. O que são cavaloscópios. É algo que os gregos inventaram. Mas o que os gregos não inventaram? Para começar, eles inventaram o pensamento. Vocês acham que são livres, acham que pensam por si mesmos, que possuem livre-arbítrio? Se pensam isso, são ingênuos. Ou ignorantes. Todos vocês pensam através de conceitos que a antiguidade grega inventou. Toda a perspectiva que vocês têm do mundo e da vida, toda a forma através da qual vocês percebem e nomeiam o mundo foi herdada dos gregos. Beleza, liberdade, grafia, diálogo, discurso, natureza, saúde, matemática, linguagem, ordem, desordem, direito, ética, plausibilidade, forma, representação, ser, transformação – isso é tudo grego. Mas estou divagando. Voltemos ao nosso tema. Qual era mesmo nosso tema?
Minhocas. Aliás, caleidoscópios. Repitam comigo: caleidoscópio. Lá vêm os gregos. É impossível fugir deles. O adjetivo” kálos”, em grego, significa “belo”. O substantivo “eidos” significa “forma”. Até aí, o que temos?” Kálos eidos”, isto é bela forma. Sabemos o quanto os gregos gostavam das belas formas, não é rapazes? Pois bem. Temos agora um verbo. “Skopein”, em grego, significa “minhocas”. Ailás, perdão. “Skopein” significa “olhar”. A palavra caleidoscópio é composta por essas três noções gregas: beleza, forma e olhar. Olhar para a beleza da forma. Admirar o belo que existe na forma. “Kaloseidoskopein” – isto é, estar atento para a beleza, ou então, refinar o olhar para que ele seja capaz de encontrar minhocas. Aliás, perdoem-me. Corrijo-me: refinar o olhar para que sejamos capazes de reconhecer o belo. Compreendem?
O caleidoscópio é um artefato óptico. Ele consiste num pequeno tubo cilíndrico no fundo do qual há pequenos pedaços coloridos de vidro cuja imagem é refletida por espelhos dispostos ao longo do tubo. Quando se movimenta o tubo, formam-se imagens coloridas múltiplas, em arranjos simétricos. Por que o caleidoscópio é interessante? Ele não tem nenhuma função prática. O capitalismo dispensa caleidoscópios, a não se que possa vendê-los com boa margem de lucro. Segundo a ótica pragmático-capitalista, o caleidoscópio não serve pra nada, é algo perfeitamente inútil.
Mas estamos pensando sobre arte. A arte – ou qualquer outra coisa – no sistema capitalista vira, imediatamente, produto. Imagens viram produto. Pessoas viram produto. Minhocas viram produto. Vocês sabem quanto custa um quilo de minhocas vivas? Quanto custa um pequeno óleo de Van Gogh? Milhões? Eu digo a vocês: a arte é absolutamente inútil. Eu não pagaria um centavo por um Van Gogh. Não é algo “comprável”. Podem discordar. Alguém discorda? Para que serve a Mona Lisa? Para que serve Fellini? Enfim, o que quero dizer é o seguinte. Pra nós, não importa se o caleidoscópio é útil ou inútil. Para o artista, o utilitarismo é vulgar. O lucro é vulgar. E é vulgar mesmo. Já conversaram com alguém pirado em lucro? Todas as ações, palavras, gestos e pensamentos do sujeito são unicamente voltadas para meios de incrementar o lucro. É mais interessante conversar com uma minhoca.
Estou querendo dizer que para pensar arte é preciso se colocar fora da lógica pragmática do útil ou inútil, rentável ou não-rentável. Então, vamos pensar: para que servem as minhocas? Perdão, eu quis dizer: porque algo como o caleidoscópio nos interessa? Lembram-se das três idéias gregas? Beleza, forma e visão. O que é o belo? É uma pergunta idiota, embora homens tão sábios como Platão a tenham feito. O “belo” é só uma palavra. Nada é belo em si mesmo. Somos nós que emprestamos “beleza” às coisas a partir dos valores que nos foram infundidos. A nossa colega Marilena, por exemplo. Tudo bem, Marilena? Ela pode achar que um copo descartável é a coisa mais bonita do mundo. Já o Tobias. Tudo bem, Tobias? Ele pode discordar da Marilena e dizer que a coisa mais bonita do mundo é o Brad Pitt. Mas voltemos ás minhocas, ou melhor, ao caleidoscópio. Tubo de espelhos, formas simétricas, imagens coloridas – e daí? Será que não passa de um brinquedo? Quem de vocês arrisca uma resposta? Ninguém?
Será que somos “Kaloseidoskopein?
Eu estou olhando para a parede,
Vejo figurinhas ou não vejo coisa nenhuma,
Vejo olhares e não vejo ninguém.
Vejo meus olhares em teus olhos ou não me vejo e não vejo nada.
Sem teus meus olhos não vejo nada, não vejo ninguém,
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- .GIF1 / Text1 (Virando Caleidoscópios / Again? Again? Again?| Atibaia | Jaime Scatena)
- Collage 1: (Chãos de Porto Alegre_Caleidoscópio – Porto Alegre – Gabriela Canale)
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- Colage 2/ Text 3: (Caleu doscopio | Poços de Caldas | Tiago Spina)
- Photo 1 – iPading ( Curiososcopio | London | R.Cambusano )
- Text 4: (Kalos/eidos/kopein | Curitiba | Ygor Raduy)
- Collage 3 (Caleidoscopico Olho a Rever | Berlin | Ísis Fernandes)
- Texto5, photo2(Será que somos Kaloseidoskopein ? , Sem titulo |Buenos Aires|María Eugenia Arostegui Sebastian)
Uma coisa que me emociona é ver como os outros olhares se apropriam do meu. Este exercício me mostra claramente como fazemos isso, muitas vezes sem ter consciência. Arte é sempre uma citação?
Sim. Trabalhamos, quase sempre sem sabê-lo, com formas já constituídas. Com imagens herdadas de um passado imemorial. Com idéias e valores que nos foram transmitidos e que estão tão profundamente enraizados em nós que já não percebemos sua influência e seu poder. Há artistas que conseguem furar essa teia moral e inventar algo realmente novo. É o que se chama, às vezes, de “gênio”. Alguém que arrebenta o esquema, transforma valores, ignora preceitos. Geralmente são terrivelmente mal compreendidos enquanto vivos. Beethoven é um bom exemplo. Ao ver que o público se retirava da sala de concerto na execução de seus últimos quartetos de cordas, disparou: “Não me entendem hoje? Me entenderão mais tarde.”